origens da capoeira

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Texto por Pedro Rossi *

" Capoeira é luta de dançarinos. É dança de gladiadores (...).
A submissão da força ao ritmo. Da violência à melodia.
A sublimação dos antagonismos (...).
O capoeira é um artista e um atleta, um jogador e um poeta."
Dias Gomes
Pouco se sabe sobre como e quando surgiu a capoeira. Provavelmente ela tenha surgido no Brasil no século XVII, período de revoltas e fugas de escravos, mas só no século XVIII aparecem os primeiros traços escritos. Em 1890, o ministro Ruy Barbosa mandou queimar todos os documentos que se referiam à escravidão, alegando que se deveria apagar da memória brasileira essa lamentável instituição1. Esse fato dificultou a vida daqueles que se aventuraram a estudar a história da capoeira. Existem muitos estudos sobre a luta no século XX, porém há pouco material escrito sobre seu período embrionário.

A fonte mais antiga onde se menciona a "capoeira" é do dia 25 de abril de 1789. Trata-se do registro de prisão de Adão, um escravo acusado de ser "capoeira"2. Nos anos seguintes, era normal a menção da palavra capoeira nos documentos policiais como motivo de prisão, mas não havia uma definição do termo. No livro Voyage Pittoresque et Historique dans le Brésil de Morits Rugendas, editado em 1835, encontra-se a primeira descrição de um jogo de capoeira:


"Os negros têm ainda um outro jogo guerreiro, muito mais violento, o jogar capoeira: dois campeões se precipitam um contra o outro, procurando dar com a cabeça no peito do adversário que desejam derrubar. Evita-se o ataque com saltos de lado e paradas igualmente hábeis; mas, lançando-se um contra o outro mais ou menos como bodes, acontece às vezes de chocarem-se fortemente cabeça contra cabeça: o que faz com que frequentemente vemos a brincadeira dar lugar a briga e que golpes e mesmo facas entrem no jogo, ensanguentando-o." (p. 26; Tradução minha)

Rugendas observou a dicotomia que perdura até hoje na capoeira: o aspecto lúdico ("a brincadeira") e o combativo ("briga"). Sua descrição nos mostra também outros aspectos ainda presentes no jogo de capoeira, como as "cabeçadas" e a ideia de esquiva ("Evita-se o ataque com saltos de lado e paradas igualmente hábeis"). A violência é um ponto marcante, mas a utilização de facas não impressiona, já que até meados do século XX, navalhas eram usadas no jogo de capoeira.

A capoeira vê seu berço no período colonial e a colônia tem na escravidão sua espinha dorsal. Negros vieram de várias partes de África trazendo como única bagagem seus costumes, sua língua, e sua cultura. Estima-se que entre 5 e 8 milhões de africanos desembarcaram nos portos brasileiros até 1850, quando foi oficialmente abolido o tráfico negreiro. Eles vieram da Guiné, Congo, Angola, Nigéria, Gana, Sudão e Moçambique, de tribos com etnias, padrões e níveis culturais diferentes como os iorubas e nagôs (Nigéria), haussa fula e mandinga (Sudão), bantûs (Congo), entre outras. Escravos de diferentes povos foram misturados quase que sem critério pelo território brasileiro: estavam postos à mesa os ingredientes para o surgimento da capoeira.

A repressão cultural contra os negros escravos fazia com que seus cultos fossem praticados com destreza e criatividade. Era necessário a eles a sobrevivência e a luta por liberdade, mas também a preservação de sua cultura ancestral como forma de manter sua identidade étnica em solo brasileiro. Nesse contexto, está a hipótese da capoeira ter surgido como luta disfarçada. Os escravos fingiam estar dançando, sorrindo e brincando, para esconder o verdadeiro significado da capoeira: uma luta de resistência. Os instrumentos e o canto dão um ar ingênuo fazendo com que a luta possa ser vista como dança ou brincadeira. Mesmo hoje, leigos no assunto acham que os participantes nunca se encostam durante o jogo, enquanto que aqueles que conhecem a arte sabem que é uma luta de contato físico com golpes objetivos e eficientes: é incontestável que o carácter musical e acrobático da arte funciona como um excelente disfarce.

Com os quilombos e as revoltas escravas do século XVII, surgiram terrenos férteis para o desenvolvimento da capoeira. Os quilombos representavam uma atmosfera de liberdade, de convívio social e de recuperação de rituais e danças africanas. Esse caldeirão cultural pode ter sido o foco que veio a dar origem à capoeira. No campo imaginário, a luta está associada a um fenômeno de liberdade do negro ou liberdade do corpo, e a capoeira assume a forma de luta guerreira ou luta de libertação. O grande mito que gira em torno das origens da capoeira é que ela nasceu do desejo de liberdade. Olhar para a capoeira como sendo fruto do desejo de liberdade confere a ela um valor especial, no sentido de que essa motivação originária está presente hoje, de alguma forma, apesar da constante mutação da luta. Nesse sentido, a capoeira é vista como instrumento de conquista da liberdade do homem.

A versão segundo a qual a capoeira nasceu no quilombo e na senzala, fecunda do desejo de liberdade, é muito aceita no mundo da capoeira e disseminada por seus mestres e professores. A história da capoeira é transmitida principalmente de forma oral e em particular pelas cantigas de roda3. Os cantos de capoeira retomam a temática da escravidão, dos quilombos e de seus heróis como Gangazumba e Zumbi dos Palmares. Supõe-se uma origem rural para a capoeira justificada principalmente pela semântica do termo. Segundo o dicionário Aurélio (1994), o vocábulo "capoeira" pode significar "mato fino que cresceu onde foi derrubada a mata virgem", onde os escravos se escondiam quando fugiam das senzalas a caminho do quilombo. Capoeira4 vira sinônimo de negro fugido ou quilombola5 que usava a sua agilidade para se esconder do capitão do mato6.

Porém, outra corrente pouco conhecida entre os capoeristas e defendida por Gerson Brasil (2000), sugere uma capoeira de origem urbana. Ela era praticada no mercado onde os escravos levavam "capoeiras" na cabeça. Neste outro contexto, ainda segundo o Aurélio, a palavra significa; "espécie de cesto fechado ou gaiola onde se alojavam aves domésticas". As duas diferentes teorias sobre a origem da capoeira, urbana (mercado) e rural (quilombo/senzala), não se anulam. Elas podem se complementar a medida em que a luta não tem um centro de dispersão e sim, parece ter surgido espontaneamente em diferentes locais e em diversos formatos.

Existe ainda uma versão mais polêmica que sugere que a capoeira veio da África. Ela é sustentada por mestre Pastinha e reiterada por seu discípulo João Grande que em entrevista afirma:


"Em 1966, quando estive em Dakar, vi a dança "n´angolo" com meus próprios olhos.(...) este tipo de dança originou a capoeira, inclusive diversos movimentos são exatamente os mesmos: negativa, meia lua de frente, cabeçada, rabo de arraia. Eles também dançavam ao som de tambores mas não havia berimbau." (Revista Capoeira; 11)

Provavelmente a capoeira teve a influência do n´angolo assim como de outras lutas e danças como o batuque, o lundu, o frevo, o bate-coxa, o quarupe, a bassula, entre outras. No entanto, tudo indica que a luta ganhou forma em território brasileiro. Também não podemos descartar a possibilidade de influência portuguesa e indígena na capoeira devido a dois fatores: primeiro a população dos quilombos era composta não só de negros mas de brancos, índios e mestiços; segundo, em relatos policiais no Rio de janeiro do inicio do século XIX constavam capoeiras brancos e pardos de origem portuguesa.

Portanto, as origens da capoeira são carentes de provas e evidências no sentido de apontar pontos exatos, datas precisas e a forma de seu surgimento. O contexto histórico da luta e seu aspecto folclórico faz misturar e confundir mito e realidade. Há uma grande tendência de aceitação, no mundo da capoeira, de uma origem que justifique o título de "luta de libertação". O mito da origem da capoeira é mais forte do que a discussão teórica acerca dela. Se a capoeira veio dos quilombos, das senzalas, do meio urbano ou se ela foi trazida da África, ainda restam dúvidas. No entanto, há um consenso de que a arte tem suas raízes na cultura africana, por estar fortemente vinculada aos escravos negros, e se desenvolve em diversas partes do território do Brasil com características e propriedades essencialmente brasileiras.


* Capoeirista graduado pela Associação Lagoa Azul Capoeira e aluno de graduação do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE-UFRJ).
Contato: zecolmeia@lagoaazulcapoeira.com



1 Na verdade ele queria dificultar o pagamento de indenizações aos fazendeiros que perderam seus escravos com a abolição da escravatura em 1888.

2 Nireu Cavalcanti, "O capoeira", Jornal do Brasil, 15/11/1999, citando sua fonte: códice 24, Tribunal da Relação, livro 10, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.

3 Analisando as cantigas de capoeira usadas hoje nas rodas, percebemos três temáticas principais: a religião, a escravidão e o mar. Seguem-se exemplos de cantigas de domínio público; "Santa Maria mãe de Deus, cheguei na igreja e me confessei ", "vá dizer a meu Sinhô, que a manteiga derramou", "eu não sou daqui, marinheiro só, eu não tenho amor, marinheiro só". As músicas compostas recentemente retomam esses três temas além de lembrar velhos mestres, exaltar grupos de capoeira, citar características naturais e culturais de determinadas regiões do Brasil e retratar as situações vividas nas rodas.

4 Até o início do século XX, capoeira se chamava àquele que praticava a arte da capoeiragem. A luta era designada capoeiragem ao invés de capoeira. Hoje quem pratica a capoeira é denominado capoeirista.

5 Habitante do quilombo.

6 Indivíduo que se dedicava à captura de escravos fugidos. O capitão do mato, como mostra a gravura de Rugendas (1835), é negro; provavelmente é um escravo "promovido".


Primeiro registro sobre a capoeira.
(Rugendas, 1824)
Capitão do Mato a procura de escravos foragidos.
(Rugendas, 1824)




ARAÚJO, Paulo Coêlho de. Abordagem Sócio-Antropológica da luta/jogo da Capoeira. Instituto Superior de Maia: Maia, 1997.

CAPOEIRA, Nestor. Capoeira, Fundamentos da Malícia. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001.

DIAS, Luis Sergio. Quem tem medo da capoeira? Rio de Janeiro: sec. Mun. de cultura, Arquivo geral da cidade do Rio de Janeiro, 2001.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Básico da Língua Portuguesa. Folha de São Paulo: Editora Nova Fronteira, 1994.

FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala: formação da família brasileira sobre o regime da economia patriarcal, s/d, Coleção livros do Brasil, 32, Lisboa.

GERSON, Brasil. História das Ruas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Lacerda Editores, 5ª edição, 2000.

REGO, Waldeloir. Capoeira angola. Salvador: Editora Itapoan, 1968.

Revista Capoeira, ano 1 numero 3, editora Candeia, São Paulo, 1999.

RUGENDAS, J. M. Voyage Pittoresque et Historique dans le Brésil. Paris: Engelman et Cie, Paris, 1835.

SOARES, Carlos Eugênio L. A negregada instituição, os capoeiras no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: sec. Mun. de cultura, Coleção Biblioteca Carioca, 1994.

 

 




Glossário
Vocabulário ou livro em que se explicam palavras pouco usadas, de significado desconhecido, ou expressões regionais.

Acarajé
bolinho da culinária afro-baiana feito de massa de feijão-fradinho frito em azeite de dendê.

Aruanda
lugar onde moram os Orixás, que são divindades dos cultos iorubas.

Banzo
saudade melancólica, tristeza. Nostalgia mortal dos negros da África.

Besouro Mangagá
é um besouro preto venenoso. Daí surgiu o apelido do lendário capoeirista Besouro Cordão de Ouro, de Santo Amaro, na Bahia.

Candomblé
religião dos negros iorubas da Bahia.

Capoeira
lugar de mato ralo onde os escravos praticavam a luta, que , mais tarde, recebeu esse nome.

Cerrado
tipo de vegetação que ocorre com freqüência no planalto central, em regiões de clima quente e úmido, com chuvas de verão e estação de seca bem marcada. Suas árvores têm galhos e troncos retorcidos, o solo é pobre e a vegetação é baixa e rasteira. os cerradões têm a aparência de verdadeiras matas.

Cintura-desprezada
jogo de balões criado por Mestre Bimba.

Dendê
fruto do dendezeiro do qual se extrai óleo para fazer o azeite de dendê.

Esquenta-banho
luta de capoeira sem o acompanhamento de instrumentos praticada após as aulas, na academia do Mestre Bimba.

Faca de Tucum
tipo de faca feita com tronco de madeira queimada. A faca que matou o Besouro Mangagá era de tronco de palmeira e tinha o formato igual ao de uma estaca.

Iemanjá
Orixá feminino, rainha do mar.

Ioruba
povo do Sudão que habitava o antigo Reino de Ioruba, atualmente parte da Nigéria. Nos séculos deizoto e dezenove algumas centenas de milhares de iorubas foram trazidos como escravos ao Brasil. Sua cultura predominou sobre a de outros grupos africanos e influenciou diversos aspectos da cultura brasileira, como poro exemplo, o religioso.

Jacobina
cidade do sertão da Bahia.

Licuri
coquinho da família do dendê usado na culinária baiana. A diferença entre os dois é que, além de óleo, o licuri dá leite.

Matrinxã
peixe de água doce, comum nos rios da Amazônia.

Patuá
amuleto protetor

Quilombo
acampamento fortificado de escravos fugitivos, geralmente distante das povoações dos brancos ou em locais de difícil acesso. O de Palmares foi o mais famoso deles.

Sertão
área mais distante do litoral caracterizada pela vegetação de caatinga. Local do nordeste pouco povoado, de clima quente e seco. As secas prolongadas impedem o cultivo e a criação de gado, determinando a emigração da população pobre.

Concebido pelo Contra-mestre Mazinho.

Bibliografia: enciclopédia Barsa, Larousse Cultural e mini-dicionário Aurélio. Pesquisa: Clarice Rito.

 

 
 


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